PAULO JORGE PEREIRA, JORNALISTA E AUTOR DE "MURRO NO ESTÕMAGO", VISITOU O NOSSO AGRUPAMENTO E DEIXOU-NOS ESTE TEXTO QUE PARTILHAMOS.
Pensem no que sofre alguém que é vítima de violência doméstica. Sentir pena de nada adianta – é preciso ajudar, agir, denunciar. A mudança começa em nós e, quanto mais depressa, mais vidas salvaremos.
Imaginem a dimensão da coragem que é necessária para que alguém reviva uma galeria de horrores a que foi submetida às mãos de homens. Pois é isso que acontece com a esmagadora maioria das vítimas/sobreviventes de violência doméstica. Os testemunhos reunidos no livro "Murro no Estômago" transmitem uma parte do que todas elas viveram, cada qual no seu próprio contexto.
Nenhum país pode referir-se à vivência numa
democracia saudável quando a violência doméstica atinge as proporções que se
verificam em Portugal, apesar dos esforços de tantos para que ela deixe de
existir. Algo de muito errado se passa numa sociedade que permite a existência
destes atos, que, na esmagadora maioria dos casos, são arquivados, e um
pequeníssimo número punido com penas suspensas.
Os especialistas no assunto ensinam que a
violência doméstica é um exercício de poder, não uma demonstração de amor por
quem se exerce esse controlo. Ver as mensagens no telemóvel da outra pessoa;
controlar as redes sociais; estar sempre a querer saber com quem se sai e em
que sítios se estará: estas são algumas das fórmulas mais habituais por parte
desse exercício doentio. Quem está numa relação deste tipo deve perceber o
labirinto que isso representa e travar o aumento das situações. Mas deve também
agir com cuidado e procurar apoio de profissionais habituados a lidar com casos
deste género. Porque reações bruscas podem suscitar comportamentos
imprevisíveis do outro lado.
Não ignorando as estatísticas - pelo contrário, tendo delas perfeita e terrível consciência -, nem a necessidade de programas de reabilitação para agressores e relatos já publicados acerca de violência contra mulheres (porque representam, sem dúvida, a maioria das pessoas atingidas) e do homicídio de mulheres, parti de situações que se tornaram desesperadas para novas vidas.
Porque por detrás dos números há gente de carne e osso. Porque por detrás dos números há gente em sofrimento. Não há sinais cor-de-rosa, nem amanhãs que cantam — as marcas existem e perduram, as memórias geram noites sem dormir, pesadelos, dificuldades diárias. Mas, por cima de tudo isso, por cima de todo o ódio que as atingiu, elas voltam a erguer-se, como diz o poema de Maya Angelou, escrito a propósito de todo o mal que os negros têm enfrentado e superado ao longo da história.
O livro assumiu, por isso, a forma de um convite dirigido a todos. Não ignorem. Não virem a cara para o lado. Não finjam indiferença perante casos de violência doméstica. Atuem de imediato e apoiem quem precisa. Se, pelo contrário, optarem por sentir pena e encolher os ombros e seguir com as vossas vidas, pensem melhor — não é de pena que precisa quem está com a vida em risco, é de intervenção o mais rápido possível, para que a situação não se transforme numa tragédia.
Não se esqueçam de que a violência doméstica foi conquistando espaço num cenário de sociedades patriarcais em que homens exercem o poder de forma esmagadora e disseminada. Apesar de todos os progressos no plano legislativo, nem as melhores leis do mundo resistem quando, na prática, se aplica o contrário do legislado.
Ainda não temos trabalho igual com salário igual. Apesar de vivermos no século XXI, e depois de tantas lutas feministas pelos mais variados e elementares direitos das mulheres, o seu caminho para lugares de chefia continua recheado de obstáculos e preconceitos. Dirigir uma empresa ou outra instituição; liderar um partido; concorrer a eleições autárquicas, europeias, legislativas e presidenciais; liderar o país: nada disto é ainda um dado plenamente adquirido para as mulheres, em Portugal e no mundo.
E a responsabilidade de alterar este panorama de
modo drástico é nossa. Tal como está nas nossas mãos acabar com a violência
doméstica. Só o pleno exercício da cidadania por parte de quem conheça os seus
direitos e deveres pode desencadear a mudança. Temos sempre de exigir mais a
quem escolhemos para governar o país, quer no plano nacional e europeu, quer em
termos locais. Mas também temos de ser mais exigentes connosco e devemos
questionar-nos acerca daquilo que, um pouco por toda a parte, não conseguimos concretizar
– por inércia, conformismo, indiferença, falta de iniciativa.
Se queremos mudar uma sociedade, votar é uma das principais opções. Não é a abstenção que resolve o assunto. Não é ficar em casa e deixar nas mãos dos outros o nosso futuro a solução. Mas também não o é "votar contra" e escolher o primeiro mentiroso que aparece com o emblema de estar fora do sistema como bandeira. Temos de envolver-nos, meter as mãos na massa, definir estratégias, propor alternativas, construir movimentos de cidadãos. Nenhuma democracia é perfeita, mas ficamos mais perto de uma democracia equilibrada e solidária quando somos os primeiros a exercê-la. Em todos os sentidos: do que queremos como resposta contra alterações climáticas às políticas de apoio à natalidade; da aplicação de fundos europeus à construção de infraestruturas; de uma educação integradora a uma saúde para todos; do combate contra os discursos de ódio à luta para acabar com as desigualdades.
Lembrem-se sempre que defender os direitos das mulheres é defender Direitos Humanos. E que os seus problemas são os nossos problemas. Porque ninguém pode sentir-se satisfeito se uma mulher está em sofrimento, a ser explorada, maltratada, humilhada. Começa na educação para a afetividade o modo de mudar. E não importa o papel que desempenhamos desde que seja pelo BEM comum: aluno, professor, advogado, médico, jornalista, jurista, político, enfermeiro, operário. Tudo isso fica em plano secundário, porque o importante é a pedagogia do sentimento.
E também cada estudante pode mostrar ao parceiro do lado como atuar de maneira certa. Insultar não é opção. Agredir não está na lista. Assediar e ofender são verbos que não devem ser conjugados. Solidariedade e empatia são os nomes que queremos ter sempre escritos em letra maiúscula. E isto não é a linguagem do politicamente correto – é a mais elementar tradução de como deve comportar-se qualquer ser humano, tão simples quanto isto. E, no entanto, aparentemente tão complicado que ainda muitos não ousam praticá-la.
Volto ao princípio para recordar a dívida de
gratidão que tenho com quem generosamente participou no livro, nunca esquecendo
a Editora 2020/Influência e toda a equipa que o tornou possível, e para
sublinhar aquilo que disse às mulheres que confiaram em mim: este livro é
vosso, eu sou apenas um porta-voz. Do vosso sofrimento, das vossas lágrimas, da
vossa coragem, da vossa luta, da vossa vontade de vencer, da vossa esperança.
Como diz o Daniel Cotrim, vocês são as verdadeiras especialistas em violência
doméstica. Acredito que as vossas histórias podem salvar vidas. E para isso as
reuni em livro.
Paulo Jorge Pereira, autor do livro "Murro no
Estômago"
Contacto da associação portuguesa de apoio à vítima:
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