domingo, 19 de dezembro de 2021

ESTÁ NAS NOSSAS MÃOS ACABAR COM A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

     PAULO JORGE PEREIRA, JORNALISTA E AUTOR DE "MURRO NO ESTÕMAGO", VISITOU O NOSSO AGRUPAMENTO E DEIXOU-NOS ESTE TEXTO QUE PARTILHAMOS. 


    

    Pensem no que sofre alguém que é vítima de violência doméstica. Sentir pena de nada adianta – é preciso ajudar, agir, denunciar. A mudança começa em nós e, quanto mais depressa, mais vidas salvaremos.

    Imaginem a dimensão da coragem que é necessária para que alguém reviva uma galeria de horrores a que foi submetida às mãos de homens. Pois é isso que acontece com a esmagadora maioria das vítimas/sobreviventes de violência doméstica. Os testemunhos reunidos no livro "Murro no Estômago" transmitem uma parte do que todas elas viveram, cada qual no seu próprio contexto.

    Nenhum país pode referir-se à vivência numa democracia saudável quando a violência doméstica atinge as proporções que se verificam em Portugal, apesar dos esforços de tantos para que ela deixe de existir. Algo de muito errado se passa numa sociedade que permite a existência destes atos, que, na esmagadora maioria dos casos, são arquivados, e um pequeníssimo número punido com penas suspensas.

   Mas pensem também nos casos de violência no namoro, violência sobre idosos ou violência sobre animais que todos os dias acontecem em Portugal e no mundo. Tolerá-los é o primeiro passo para que aumentem e passem impunes. Aceitá-los é sermos cúmplices de algo que não pode continuar a suceder.

    Os especialistas no assunto ensinam que a violência doméstica é um exercício de poder, não uma demonstração de amor por quem se exerce esse controlo. Ver as mensagens no telemóvel da outra pessoa; controlar as redes sociais; estar sempre a querer saber com quem se sai e em que sítios se estará: estas são algumas das fórmulas mais habituais por parte desse exercício doentio. Quem está numa relação deste tipo deve perceber o labirinto que isso representa e travar o aumento das situações. Mas deve também agir com cuidado e procurar apoio de profissionais habituados a lidar com casos deste género. Porque reações bruscas podem suscitar comportamentos imprevisíveis do outro lado.

     Ao longo das páginas do "Murro no Estômago", existe a oportunidade de ler histórias e experiências de quem lida com o tema há mais ou menos tempo e, por isso, tem condições para propor caminhos que podem levar-nos a melhorar. Estão também à disposição não apenas descrições de sinais para que se identifiquem casos de violência doméstica, mas também contactos de instituições que existem para ajudar quem mais necessita e o mais depressa possível.

     Eu não sou um especialista e, por isso, não escrevi nessa qualidade. Escrevi num esforço de cidadania como contributo para que a realidade mude de forma drástica; escrevi, porque me envergonha que homens como eu sejam capazes de atos atrozes contra mulheres, crianças e idosos, que muitas vezes só ficamos a conhecer demasiado tarde, quando as histórias já se transformaram em tragédias e são relatadas como tal pelos meios de comunicação; escrevi, porque, também como jornalista, considerei meu dever agir para que se encetem mudanças, embora não seja um livro jornalístico em todos os sentidos. Citando Nanni Moretti quando realizou o documentário "Santiago, Itália", com testemunhos de quem escapou da ditadura de Pinochet no Chile através da embaixada de Itália, "nunca serei imparcial tendo os torturadores num lado e as vítimas noutro".



    Não ignorando as estatísticas - pelo contrário, tendo delas perfeita e terrível consciência -, nem a necessidade de programas de reabilitação para agressores e relatos já publicados acerca de violência contra mulheres (porque representam, sem dúvida, a maioria das pessoas atingidas) e do homicídio de mulheres, parti de situações que se tornaram desesperadas para novas vidas.

    Porque por detrás dos números há gente de carne e osso. Porque por detrás dos números há gente em sofrimento. Não há sinais cor-de-rosa, nem amanhãs que cantam — as marcas existem e perduram, as memórias geram noites sem dormir, pesadelos, dificuldades diárias. Mas, por cima de tudo isso, por cima de todo o ódio que as atingiu, elas voltam a erguer-se, como diz o poema de Maya Angelou, escrito a propósito de todo o mal que os negros têm enfrentado e superado ao longo da história.

    O livro assumiu, por isso, a forma de um convite dirigido a todos. Não ignorem. Não virem a cara para o lado. Não finjam indiferença perante casos de violência doméstica. Atuem de imediato e apoiem quem precisa. Se, pelo contrário, optarem por sentir pena e encolher os ombros e seguir com as vossas vidas, pensem melhor — não é de pena que precisa quem está com a vida em risco, é de intervenção o mais rápido possível, para que a situação não se transforme numa tragédia.

    Não se esqueçam de que a violência doméstica foi conquistando espaço num cenário de sociedades patriarcais em que homens exercem o poder de forma esmagadora e disseminada. Apesar de todos os progressos no plano legislativo, nem as melhores leis do mundo resistem quando, na prática, se aplica o contrário do legislado.

    Ainda não temos trabalho igual com salário igual. Apesar de vivermos no século XXI, e depois de tantas lutas feministas pelos mais variados e elementares direitos das mulheres, o seu caminho para lugares de chefia continua recheado de obstáculos e preconceitos. Dirigir uma empresa ou outra instituição; liderar um partido; concorrer a eleições autárquicas, europeias, legislativas e presidenciais; liderar o país: nada disto é ainda um dado plenamente adquirido para as mulheres, em Portugal e no mundo.

    E a responsabilidade de alterar este panorama de modo drástico é nossa. Tal como está nas nossas mãos acabar com a violência doméstica. Só o pleno exercício da cidadania por parte de quem conheça os seus direitos e deveres pode desencadear a mudança. Temos sempre de exigir mais a quem escolhemos para governar o país, quer no plano nacional e europeu, quer em termos locais. Mas também temos de ser mais exigentes connosco e devemos questionar-nos acerca daquilo que, um pouco por toda a parte, não conseguimos concretizar – por inércia, conformismo, indiferença, falta de iniciativa.

     Nestes tempos estranhos, que têm sido marcados por uma perigosa pandemia capaz de ceifar milhões de vidas e de alterar por completo os nossos comportamentos, precisamos de estar mais atentos do que nunca. Devemos distinguir a linguagem dos vendedores de banha da cobra, que apresentam discursos com soluções fáceis para tudo, e desmascarar a sua falta de escrúpulos. Nunca os populistas foram solução para coisa alguma. Nunca as mensagens de desrespeito pelos outros resultaram em políticas positivas. Nunca os extremismos contribuíram para a evolução da Humanidade. Tragédia, guerras, sofrimento horroroso, milhões de mortos, Holocausto e destruição – é esse o rasto histórico e o legado que nos deixaram os populismos e as ditaduras ao longo da História. E, no entanto, as mensagens aí estão de regresso, envoltas em cantos de sereia dirigidos sobretudo aos desiludidos com a política. Mas é a isso que queremos voltar?

    Se queremos mudar uma sociedade, votar é uma das principais opções. Não é a abstenção que resolve o assunto. Não é ficar em casa e deixar nas mãos dos outros o nosso futuro a solução. Mas também não o é "votar contra" e escolher o primeiro mentiroso que aparece com o emblema de estar fora do sistema como bandeira. Temos de envolver-nos, meter as mãos na massa, definir estratégias, propor alternativas, construir movimentos de cidadãos. Nenhuma democracia é perfeita, mas ficamos mais perto de uma democracia equilibrada e solidária quando somos os primeiros a exercê-la. Em todos os sentidos: do que queremos como resposta contra alterações climáticas às políticas de apoio à natalidade; da aplicação de fundos europeus à construção de infraestruturas; de uma educação integradora a uma saúde para todos; do combate contra os discursos de ódio à luta para acabar com as desigualdades.

    Lembrem-se sempre que defender os direitos das mulheres é defender Direitos Humanos. E que os seus problemas são os nossos problemas. Porque ninguém pode sentir-se satisfeito se uma mulher está em sofrimento, a ser explorada, maltratada, humilhada. Começa na educação para a afetividade o modo de mudar. E não importa o papel que desempenhamos desde que seja pelo BEM comum: aluno, professor, advogado, médico, jornalista, jurista, político, enfermeiro, operário. Tudo isso fica em plano secundário, porque o importante é a pedagogia do sentimento.

    E também cada estudante pode mostrar ao parceiro do lado como atuar de maneira certa. Insultar não é opção. Agredir não está na lista. Assediar e ofender são verbos que não devem ser conjugados. Solidariedade e empatia são os nomes que queremos ter sempre escritos em letra maiúscula. E isto não é a linguagem do politicamente correto – é a mais elementar tradução de como deve comportar-se qualquer ser humano, tão simples quanto isto. E, no entanto, aparentemente tão complicado que ainda muitos não ousam praticá-la.  


    

    Volto ao princípio para recordar a dívida de gratidão que tenho com quem generosamente participou no livro, nunca esquecendo a Editora 2020/Influência e toda a equipa que o tornou possível, e para sublinhar aquilo que disse às mulheres que confiaram em mim: este livro é vosso, eu sou apenas um porta-voz. Do vosso sofrimento, das vossas lágrimas, da vossa coragem, da vossa luta, da vossa vontade de vencer, da vossa esperança. Como diz o Daniel Cotrim, vocês são as verdadeiras especialistas em violência doméstica. Acredito que as vossas histórias podem salvar vidas. E para isso as reuni em livro.

 

Paulo Jorge Pereira, autor do livro "Murro no Estômago"

Contacto da associação portuguesa de apoio à vítima:



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